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Ausência de pretensão resistida dos hospitais na ação de exibição de prontuários médicos

Ausência de pretensão resistida dos hospitais na ação de exibição de prontuários médicos – impossibilidade de condenação sucumbencial
O documento só pode ser entregue ao paciente ou a pessoa indicada por este, sendo correta a conduta do hospital em negar a entrega do prontuário a terceiros.

Por Gilson J. Goulart Jr. e Mariana Pigatto Seleme

Dentre os problemas enfrentados pelos hospitais em relação à guarda e entrega do prontuário médico, está a possibilidade de condenação da instituição ao pagamento de verbas sucumbenciais (custas e honorários) quando são propostas ações de exibição de documentos para obtenção destes prontuários.

Antes de mais nada, é necessário esclarecer que o prontuário médico pode ser fornecido somente ao paciente ou pessoa indicada por este (com a devida representação), ao Conselho Federal ou Regional de Medicina ou ainda por determinação judicial.

Para pacientes falecidos, o Conselho Federal de Medicina atualmente recomenda que a entrega do prontuário seja feita quando solicitada pelo cônjuge/companheiro sobrevivente, bem como pelos sucessores legítimos do paciente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau, desde que documentalmente comprovado o vínculo familiar e observada a ordem de vocação hereditária (recomendação CFM 03/14).

Registre-se que tal recomendação se deu por conta da tutela antecipada concedida nos autos da Ação Civil Pública nº 26798-86.2012.4.01.3500, movida pelo Ministério Público Federal, em trâmite na 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Goiás. No entanto, é preciso registrar que tal decisão é provisória e está sendo atacada pelo Conselho Federal de Medicina por intermédio do recurso de Agravo de Instrumento nº 0015632-13.2014.4.01.0000, em trâmite no TRF 1ª Região, que ainda aguarda julgamento.

De todo modo, certo é que a conduta do hospital, de não entregar o prontuário médico a terceiros (respeitando as exceções aplicáveis), está em consonância com o direito à intimidade e à vida privada do paciente, visto que o prontuário é um documento eminentemente particular, com informações íntimas importantes, que deve ser mantido sob sigilo para salvaguardar os direitos personalíssimos de cada paciente. Nesse exato sentido, dispõe o Código de Ética Médica (resolução CFM 1931/09, Capítulo IX, artigo 73 e Capítulo X, artigos 85, 89 e 90).

Além disso, a própria Constituição Federal prevê a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (artigo 5º, X), bem como o Código Penal veda a revelação de segredo obtido em razão de profissão (artigo 154), razão pela qual os hospitais não podem fornecer à pessoa desautorizada cópia dos prontuários médicos, sob pena de sofrer sanções penais, civis e administrativas.

Há inclusive precedentes judiciais que deferem indenização por danos morais na hipótese de entrega de prontuário médico a terceiro1. Corroborando esta tese, afirmou o TJ/PR em outra oportunidade: “(…) o comparecimento de terceiro em instituição hospitalar, pretendendo obter uma série de prontuários, sem o consentimento expresso do paciente, deve ser negado, sob pena de punição daqueles que o concedam. (…)”2.

Portanto, ao recusar a entrega do prontuário médico a terceiro que não detém legitimidade para retirar tal documento diretamente do hospital, a instituição de saúde age em exercício regular de direito (art. 188, I do Código Civil). Isto é, não há conduta ilícita ou irregular por parte do hospital.
Não obstante, os interessados na obtenção do prontuário médico reiteradamente vêm se valendo da propositura de ações de exibição de documentos, objetivando obtê-los através de ordem judicial. Isso por si só não seria um problema. Mas, algumas decisões de primeiro grau vêm condenando os hospitais ao pagamento das custas processuais e honorários de sucumbência, mesmo quando estes atendem à ordem judicial e exibem os documentos determinados.

É neste dilema que se encontram as instituições de saúde que, agindo no exercício regular de um direito reconhecido, e não entregando os prontuários médicos a terceiros, são frequentemente citadas para os apresentarem em ações de exibição de documentos ajuizadas, sendo posteriormente condenadas ao pagamento das custas judiciais e honorários advocatícios, como se tivessem dado causa à propositura de tais demandas.

Equivocado, porém, tal entendimento. Isso porque, quando há determinação judicial para apresentação dos documentos, e a instituição os leva ao Juízo prontamente, não há pretensão resistida. E, não havendo pretensão resistida, também não há que se falar em condenação em honorários sucumbenciais.

Ora, se a instituição de saúde exibiu os documentos solicitados, sem nenhuma resistência, no prazo da contestação, demonstrando ainda as legítimas razões que a levaram a não proceder a entrega anterior, não é razoável lhe aplicar os ônus de sucumbência.

Neste sentido foi o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná em decisões recentemente proferidas3.

Nada mais coerente. A aplicação do princípio da sucumbência pressupõe a existência de lide, conceituada na conhecida lição de Carnelutti como um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, que, in casu, se caracterizaria pela recusa da parte demandada em exibir a documentação pleiteada na petição inicial. Não havendo recusa, não há que se falar em pretensão resistida, muito menos em ônus sucumbencial. (CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Ed. Lejus, 1999.)

Sobre o tema, consta também das anotações de Theothônio Negrão: “Para a existência da verba honorária, é necessário existir sucumbência da parte contrária, inexistente esta, inexiste aquela (…). Por outras palavras: é preciso que haja vencedor e vencido para que se aplique o art. 20, ou seja, que tenha havido um litígio (RJTJESP 93/96) e, consequentemente sucumbência (cf., neste sentido art. 25), pois o fundamento da condenação em honorários é o fato objetivo da derrota”4.

Corroborando essa tese, que nos parece a mais adequada para a solução de casos semelhantes, é possível encontrar também recentes precedentes do Superior Tribunal de Justiça5, o que demonstra que os posicionamentos contrários não se alinham com a jurisprudência mais atual sobre a matéria.

Conforme exposto, conclui-se que inexiste sucumbência na cautelar de exibição de documentos se o documento comum, reclamado pelo autor da ação, for apresentado sem nenhuma resistência. A condenação em custas e honorários de advogado só deve ocorrer quando houver injustificada resistência por parte da instituição de saúde.


Referências

1 TJPR – 1ª Câmara Cível – Apelação Cível n.º 0768769-8 – Dois Vizinhos – Rel.: Des. Salvatore Antonio Astuti – Unânime – Data de Julgamento. 28.06.2011 e TJ-MG 1.0024.06.025816-7/001(1), Relator: WAGNER WILSON, Data de Julgamento: 30/10/2008.

2 TJPR – 8ª Câmara Cível – Apelação Cível nº 1314650-6, Relatora: Lilian Romero, Unânime, Data do Julgamento: 18.02.2016, Data da Publicação: 03/03/2016.

3 TJ-PR – APL: 13288156 PR 1328815-6 (Acórdão), Relator: Rui Bacellar Filho, Data de Julgamento: 21/10/2015, 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 1683 05/11/2015 e TJ-PR – APL: 13138691 PR 1313869-1 (Acórdão), Relator: José Sebastião Fagundes Cunha, Data de Julgamento: 12/11/2015, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 1712 17/12/2015.

4 NEGRÃO, Theothônio. “Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor”. 42ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2010. P. 137.

5 AgRg no REsp 1409614/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 25/08/2015, DJe 16/09/2015 e AgRg no AREsp 707.231/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/08/2015, DJe 21/08/2015.


*Gilson J. Goulart Jr. é advogado associado e chefe do Departamento de Direito Civil do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados. É especialista em Direito Civil e Processo Civil.

*Mariana Pigatto Seleme é advogada do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados. É especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

 

https://www.migalhas.com.br/depeso/238722/ausencia-de-pretensao-resistida-dos-hospitais-na-acao-de-exibicao-de-prontuarios-medicos—impossibilidade-de-condenacao-sucumbencial

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Indenizações indiscriminadas prejudicam relações de consumo

OPINIÃO

7 de maio de 2016, 7h14

Por Gilson Goulart Jr.

Os consumidores estão cada vez mais esclarecidos sobre os seus direitos e, por consequência, se insurgem frequentemente contra algumas práticas adotadas pelos fornecedores. Como nem tudo se resolve de forma amistosa, o efeito direto que se constata é o aumento crescente no número de demandas judiciais envolvendo relações de consumo.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados no relatório Justiça em Números 2015[1], o Direito do Consumidor é o terceiro tema mais demandado no Poder Judiciário, com mais de dois milhões de ações em trâmite. Entretanto, se considerarmos apenas os juizados especiais e as turmas recursais, o Direito do Consumidor assume o primeiro lugar isolado.

Ainda que a grande maioria dos consumidores tenha reais motivos para reclamar, é possível constatar também nesse volume a ocorrência de inúmeros abusos na busca por supostos “direitos”.

Muitas vezes, consumidores mal-intencionados (que felizmente ainda são a minoria), ao enfrentar algum infortúnio na relação com o fornecedor, recusam a simples resolução do problema (ou sequer tentam), para buscar obter, por meio do Poder Judiciário, uma indenização por dano moral. Utilizam-se dessa possibilidade como um verdadeiro método de chantagem contra o fornecedor.

Para quem milita na área, é fácil identificar inúmeros abusos que são cometidos pelos consumidores no ímpeto de conquistar alguma indenização por dano moral.

Certamente, o sistema previsto hoje nos juizados especiais facilita esse tipo de pedido, já que não há custas para propositura da demanda e tampouco honorários sucumbenciais em caso de derrota. Porém, indubitavelmente, o que mais motiva esta crescente “judicialização das relações de consumo” é o deferimento corriqueiro de indenizações por situações simples, que poderiam configurar, no máximo, mero descumprimento contratual.

E, como vem sendo intensamente debatido na jurisprudência atual, não é todo descumprimento contratual que merece ser punido com o pagamento de uma indenização por dano moral.

O dano moral, nas palavras de Yussef Said Cahali, é “(…) a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física — dor-sensação, como a denominada Carpenter — nascida de uma lesão material; seja a dor moral — dor-sentimento, de causa imaterial”[2].

Já o descumprimento contratual deve ser encarado como mero aborrecimento ou dissabor, possível de acontecer em toda e qualquer relação consumerista, mas que não tem o condão de expor o consumidor a dor, vexame, sofrimento ou constrangimento perante terceiros.

A propósito, pertinente é destacar a lição do desembargador Sergio Cavalieri Filho, que aborda o assunto com propriedade:

“Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos”[3].

Os julgados das turmas recursais, aos poucos, vêm adotando essa linha de raciocínio, como se constata na recente decisão proferida pela 3ª Turma Recursal Cível do TJ-RS, verbis:

“RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. VÍCIO DE QUALIDADE EM APARELHO CELULAR. DANO MORAL INOCORRENTE. MERO DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. O descumprimento contratual noticiado nos autos não enseja reparação moral. É assim porque a falha na prestação do serviço ocorrida, consubstanciada na ausência de resolução pela ré do vício de qualidade apresentado no produto, por si só, não é suficiente para configurar a ocorrência de danos extrapatrimoniais, sob pena de banalizar o instituto (inteligência do Enunciado n. 05 do Encontro dos Juizados Especiais Cíveis do Estado, de maio de 2005, realizado em Gramado). A reparação por dano imaterial somente é cabível em situações excepcionais, ou seja, quando constatada violação aos direitos da personalidade ou à dignidade ou, ainda, em situações que tenham causado angústia, sofrimento e abalo moral a ponto de causar desequilíbrio emocional ao consumidor, o que não foi demonstrado no caso em tela. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. RECURSO PROVIDO”.

(TJ-RS – Recurso Cível: 71005660261 RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Data de Julgamento: 12/11/2015, Terceira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/11/2015) – destaques não incluídos no original.

Infelizmente, ao se analisar as decisões de primeiro grau sobre o tema nos juizados, constata-se que o posicionamento acima ainda é raro. Na maioria das hipóteses, equipara-se todo e qualquer descumprimento contratual como situação geradora de danos morais.

Os fornecedores estão sendo “nivelados por baixo”. Parte-se da premissa de que toda e qualquer empresa ré numa ação de relação de consumo seja uma contumaz transgressora dos direitos consumeristas.

Não se pretende aqui defender a tese de que os danos morais não podem ser deferidos nas relações de consumo, mas que tal deferimento seja feito de forma mais criteriosa, condenando situações que de fato tenham exposto o consumidor à tamanha dor que seja razoável o pagamento de indenização por danos morais.

É certo que o mau fornecedor deve ser punido, e a prática constante de desrespeito ao consumidor deve ser banida, mas não se pode deferir, para toda e qualquer situação que fuja do inicialmente previsto, uma indenização por danos morais.

Somente o deferimento criterioso dos pedidos de dano moral nas relações de consumo é que vai contribuir para o desenvolvimento do nosso sistema. Permitir que as partes resolvam seus problemas sem a necessidade do Poder Judiciário é um objetivo que deve ser perseguido por todos os atores dessa relação na linha do que orienta o novo Código de Processo Civil e o novo Código de Ética da OAB. Será uma evolução tanto para o Direito do Consumidor como para as instituições brasileiras e para a nossa própria sociedade.

Os critérios são importantes para os dois lados, não só para que os fornecedores aprendam a respeitar os direitos expressos no Código de Defesa do Consumidor, como também para evitar que se criem verdadeiras “ilusões” nos consumidores, fazendo crer que toda e qualquer situação merece ser indenizada além dos prejuízos materiais.


[1] Justiça em Números 2015: ano-base 2014 / Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2015, fl. 50 e seguintes.
[2] CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2011.
[3] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010.
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Gilson Goulart Jr. é advogado especialista em Direito Civil e Processo Civil e chefe do Departamento de Direito Civil do escritório Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados.

Revista Consultor Jurídico, 7 de maio de 2016, 7h14